Agricultores da região perderam fonte
de renda e esperam indenizações. Há minério em terras que serão transferidas
para a empresa, que nega intenção de explorá-las.
Por Globo Rural
02/06/2019
Muitos sobreviventes da tragédia de Brumadinho ainda negociam com a Vale
a indenização pelas perdas humanas e materiais. A reportagem do Globo Rural
reencontrou famílias de agricultores visitados em janeiro, logo após o
rompimento da barragem. Eles vivem em compasso de espera, em busca de
reparação, e com medo do futuro.
Logo na entrada do município, o letreiro virou uma espécie de memorial.
O tráfego intenso de caminhões e máquinas pesadas agora é comum nas estradas. E
a cidade de 40 mil habitantes inchou. Trabalhadores, curiosos e oportunistas
atrás de indenização.
"As transferências de título de eleitor aumentaram drasticamente.
Você vê pessoas tentando fazer contrato de aluguel com data retroativa, indo no
cartório protocolar. Hoje você vê polícia o tempo todo, assalto na porta do
banco. Hoje o município vive uma insegurança", diz Andressa Rezende
Jardim, secretária da agricultura.
O trem carregando material com minério continua suas viagens. Na área
atingida pelos rejeitos, as placas de vendas de imóveis se multiplicaram e, por
toda parte que se vá, tem sempre algum acesso fechado.
Sem a roça, muitos agricultores passam os dias parados, olhando de longe
a terra onde trabalhavam. "Sua vida tá toda ali, seu trabalho, suas
condições todas, e com 15 segundos foi tudo levado", diz Ronaldo Oliveira.
"Tem a minha máquina lá, tem o trator dele. Se forem lá e roubarem
uma peça, se você não fizer uma ocorrência, some e dizem: não podemos fazer
nada, já estava assim antes", emenda.
Ronaldo é pai de Ronan, de 14, anos, um dos rostos conhecidos da
tragédia. Ele foi resgatado da lama e ficou internado por 8 dias. Hoje, o
menino está recuperado e se diverte andando de bicicleta, mas diz que não gosta
de voltar ao local do acidente.
"Dá um frio na barriga, dá uma sensação ruim”, diz. "É um dia
que a gente não vai esquecer, foi terrível", completa a mãe do garoto,
Luciane Oliveira.
Assim como outros agricultores, a família recebeu, até agora, R$ 15 mil
pela renda que perdeu da lavoura. E vão receber, por um ano, o pagamento de um
salário mínimo por adulto e meio pelo adolescente. Mas as dívidas se acumulam.
"Tem [financiamento do] Pronaf, prestação de caminhão", diz Ronan.
E eles ainda vêm sofrendo preconceito.
"A preocupação das pessoas é se você já voltou a trabalhar, como se a gente não quisesse. Eles acham que é arrumar uma terra e começar. Só que precisa de motor, bomba, encanamento, trator, que está tudo debaixo da lama. É dinheiro que a gente foi juntando para comprar esses negócios. Como vamos começar do nada sem saber de onde vem?", diz Luciane.
Em busca de reparação, a vida das pessoas atingidas virou um vaivém de
reuniões e audiências. Com medo de prejudicar uma possível negociação, muitos
agricultores não querem dar entrevistas, ou medem suas palavras.
"A gente tem o nome limpo na praça e vai levando porque tinha
reserva. E [daqui] para frente?", questiona José Salvador. "A gente
adiou dívidas porque a gente comprava no Ceasa. Mas daqui uns dias tem que
pagar."
O município, conhecido como produtor de hortaliças, viu suas vendas
diminuírem, e não só dos 60 produtores que ficam na área atingida pelos
rejeitos.
"Nós tivemos vários caminhões que retornaram do Ceasa Minas por não conseguir vender. [Dizem]: ah, é de Brumadinho, então está contaminado. E não é verdade! Estamos acompanhando os produtores e temos vários prejudicados. Eles tiveram um prejuízo incalculável", diz a secretária do Meio Ambiente.
Com autorização dos Bombeiros, o Globo Rural entrou em uma área isolada,
na comunidade do Córrego do Feijão, próximo à barragem que se rompeu. O local
tem rejeitos dos dois lados, e, conforme se anda pela estrada, encontra-se
resto de casas, tratores, veículos, tudo o que estava soterrado.
Não muito longe dali, estão mais de 400 animais resgatados da tragédia.
A fazenda alugada pela Vale serve de abrigo até que os donos possam recebê-los
de volta. Cachorros e gatos, vários deles nascidos no local, vão para a adoção
se os donos não aparecerem.
A agricultora Renata Barbosa é dona de dois dos bichos, o cavalo Coronel
e a égua Paquita. Ela e o marido ainda não têm onde colocá-los, porque a área
que arrendavam está abandonada.
Tristeza e desespero
De volta à casa onde moravam, que foi saqueada, Renata se entristece.
"Você olha para tudo o que construía com tanta luta e tanto amor, é muita
tristeza."
Hoje, ela vive com a família em uma casa alugada pela Vale e, na
cozinha, mostra os remédios que passaram a fazer parte da sua rotina.
"Calmante, remédio para dormir, remédio para dores musculares",
lista. "Preocupa a incerteza da vida da gente a partir de agora."
Antônio Nunes, conhecido como Tonico, também mostra a horta que fechou.
O cultivo, onde trabalhavam várias famílias, hoje é só mato. Quinze anos de
trabalho perdido.
"Todos perderam a renda, todos não sabem o que fazer. Eles não sabem fazer outra coisa, então está todo mundo estado de desespero."
Ele diz que encontrar outra área como aquela para trabalhar não é fácil.
"Próximo a acesso para transportar nossas mercadorias, não encontra. Com a
água que a gente tinha aqui, que era cristalina, cheia, de peixe… Hoje não te
mais nada".
É à Defensoria Pública que recorrem as pessoas que não podem pagar um
advogado. Todos os dias, há novos atendimentos.
"As pessoas que tinham áreas rurais receberão pela terra. Toda a
área é indenizada, inclusive o dano moral em razão dessa angústia de não saber
o que vai acontecer no futuro", diz o defensor Antônio de Carvalho Filho.
O valor pago por hectare, segundo ele, está em torno dos R$ 26 mil. Para
a secretária de agricultura, Andressa Rezende Jardim, o valor justo seria de
cerca de R$ 50 mil. Segundo a Vale, será pago um valor competitivo, equivalente
à situação de mercado anterior ao rompimento.
Terra rica em minério
Alguns dias atrás, surgiram novas dúvidas sobre os valores da
indenização. Há nove anos, a Vale sabe que 905 hectares, incluindo parte da
área atingida pelos rejeitos, possuem minério em seu subsolo.
A empresa pediu sigilo sobre esses dados à Agência de Mineração apenas 4
dias após firmar termo de indenização com a Defensoria Pública do Estado de
Minas. Quando a vítima assina o termo, concorda em transferir a posse de sua
terra para a Vale. A Defensoria Pública da União e os ministérios públicos
federal e estadual pedem providências à defensoria do estado.
A defensoria estadual diz que o termo de compromisso considera danos já
ocorridos e que prejuízos futuros podem gerar novos acordos. A Vale diz, em
nota, que não pretende minerar nas áreas próximas a Córrego do Feijão.
O trabalho para resgatar vítimas continua. No local onde ficava o
restaurante de funcionários da Vale, perto da barragem que se rompeu, é onde se
concentra a maior movimentação de Bombeiros e máquinas. Mas o que mais sai de
lá são caminhões carregados de rejeitos.
Eles são peneirados e, depois, seguem para enormes caminhões. A Vale diz
que esse material está sendo acondicionado em ecobags, dentro da mina, e que,
depois, seguirá para aterros adequados. A empresa prometeu, mas não liberou a
entrada da reportagem para fazer imagens desses ecobags.
Marcelo Klein, porta-voz da Vale, diz que há minério nos rejeitos, mas
que eles não serão reminerados. "Não tem preocupação com isso, não."
Promessas e espera
As vítimas da tragédia vivem de promessas e espera. Para quem perdeu
parentes na tragédia, apesar de estar prevista uma indenização para cada pessoa
do núcleo mais próximo da família, não há reparação possível.
Mais uma vez, Carine Aparecida da Silva saiu da defensoria sem
respostas. O marido perdeu o emprego, na pousada que ficou sob a lama. A casa
deles também foi destruída. Mas nada se compara à perda da irmã, Camila, de 16
anos. Para ajudar o pai doente, a adolescente tinha começado em um emprego novo
no dia 21 de janeiro, como camareira, na mesma pousada, soterrada quatro dias
depois.
"Eles vão tentar me dar uma cala boca, porque a única reparação que eu queria era a minha irmã de volta. Eu só queria a vida e isso eles nunca vão poder me dar de volta. Dinheiro é um papel, não é tudo. Para eles, é tudo."
Em um ritual sagrado, os índios tentam trazer de volta a vida do rio. De
acordo com a tradição deles, foi de uma gota d’água que surgiu a nação Pataxó.
Um ritual diário numa região inteira carente de futuro.
Segundo a Agência Nacional de Águas, 45 barragens ainda correm risco de
rompimento em todo o Brasil, incluindo reservatórios de água e áreas de
mineração.
Produtores sofrem com água contaminada a 300 km de Brumadinho,
onde barragem da Vale se rompeu
Acesso a rio com rejeitos de
minério foi bloqueado e produtores têm prejuízos. Fornecimento com
caminhão-pipa é irregular e nem todos recebem indenização.
Por Globo Rural
Quatro meses depois do rompimento da barragem que deixou 270 mortos e desaparecidos, em Brumadinho, em Minas Gerais, o visual da área afetada agora é outro: parte da lama foi encoberta pelo mato. Mas as pessoas continuam sofrendo as consequências da tragédia a quilômetros de distância do local, a começar pela contaminação da água.
A estrutura entrou em colapso no dia 25 de janeiro e espalhou
rejeitos de mineração que atingiram parte das comunidades rurais de Córrego do
Feijão e Parque da Cachoeira. O córrego Ferro-Carvão teve seu curso desviado e
virou quase um fio de lama, que corre até uma ponte recém construída.
A área virou um canteiro de obras. Perto dali, a empresa
instalou uma estação para tratar a água antes que ela chegue ao rio Paraopeba,
mas o sistema ainda está em teste.
Os efeitos do rompimento da barragem não ficaram restritos a Brumadinho. Junto com os rejeitos, os prejuízos seguiram o curso do rio, afetando vários municípios.
Em uma expedição pelo rio, a ONG SOS Mata Atlântica
analisou amostras da água e concluiu que os rejeitos tinham atingido o Rio São
Francisco.
O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) chegou a outro
resultado. Os técnicos monitoram 18 pontos do rio, passando pela usina de
Retiro Baixo, no município de Pompéu, até a hidrelétrica de Três Marias, já no
São Francisco."Há algum tempo os dados da água já demonstram que [o rejeito] não passou
de Retiro Baixo. E em hipótese de passar, não traria alteração na represa de
Três Marias. Com nossos dados, a gente acha muito difícil a chegada no Rio São
Francisco", diz Marília Melo, diretora do instituto.
Ela explica que, como o rejeito tem uma densidade grande, ele se
depositou no fundo do rio. Quando chove, é revolvido e a qualidade da água
volta a piorar.
"A água está contaminada. A gente sabe que houve alteração da qualidade."
"Em um primeiro momento, isso foi mais fácil,
claro. Principalmente nos 40 primeiros quilômetros do ponto onde a barragem
está. A gente teve ocorrência de metais pesados, como chumbo, mercúrio, e foi
isso que motivou o governo de Minas a suspender os usos", diz.
Em vários pontos do rio, a Vale vem construindo cercas para
impedir o acesso ao rio.
Até a entrada do reservatório da usina de Retiro Baixo, os
rejeitos já percorreram mais ou menos 300 quilômetros. A operação da
hidrelétrica não foi afetada. No imenso reservatório, o dano foi diluído, mas
os vizinhos produtores rurais da região já contam o prejuízo.
É o caso de Crisipo Valadares Jr., que bombeava água do rio para
todas as atividades de seu sítio. "O [pessoal do] 'Meio Ambiente' veio
mandando tirar tudo: bomba, barco, tudo lá do rio."
Ele conta que parte dos peixes que criava morreu por falta de
oxigênio até chegarem os primeiros caminhões-pipa. "Até resolver esse
problema da água não vale a pena [insistir na criação de peixe]. Tem dia que
não vem, eles começam a morrer de novo, é prejuízo, né?", diz.
Com medo de a água não sobrar para a irrigação, a roça de quiabo
ficou menor. "Na área toda colhia 100, 120 caixas por panha. Agora estou
colhendo umas 30."A família de Crisipo vendeu três animais para segurar as contas, porque ajuda
em dinheiro não chegou. A Vale prometeu pagar uma compensação a todos os
afetados durante um ano ano: um salário mínimo por adulto, meio por adolescente
e ¼ por criança.
"Disseram que ia chegar. Até hoje não chegou aqui,
não", afirma.
Lucano Heleno da Silva é outro produtor da região que não
recebeu. Ele viu seu acesso à água ser fechado e o poço teve a bomba retirada.
"Tem dia que a água chega, tem dia que não. E com isso o gado sentiu. Tirava 800 e estou tirando 280 com o mesmo tanto de vaca leiteira."
Além da água, o pasto também ficou limitado. “Daqui a
uns 30 dias, essa cerca está uns 100 metros retirada da água. A terra é úmida,
sobe um capim, enverdece e o gado passa a seca toda com essa extensão da beira
do rio.”
O capim secando e a água sem previsão de ser liberada deixam o
produtor aflito.
"Como o leite quebrou, eu já estou devendo na cooperativa. Não sei como vou pagar. Não tenho mais condição de comprar porque já estou devendo muito. E não tenho nem um pingo de ração no galpão".
Segundo ele, cada caminhão-pipa chega com 5 mil litros
de água, que só dão para um dia.
Hábitos
alterados
Em uma aldeia, em São Joaquim de Bicas, a água vem da
companhia de saneamento, mas também há problema. Uma caixa de 5 mil litros foi
instalada para atender 220 pessoas.
"A gente já estava acostumado com o rio e não tinha
limitação de quantos litros de água gastar. Nossa irrigação da horta foi
reduzida e, com o rio sem peixe, a alimentação mudou muito", afirma
Ãngohó, índia Pataxó Hãhãhãe.Ela conta que a Vale fez um acordo e manda cesta básica e carne para a aldeia.
"Muitos não se adaptaram [à alimentação], outros se sentem mal. A gente
não tinha o acúmulo de lixo, de enlatado."
Na beira do rio, os índios lamentam a perda do alimento.
"A gente tirava 30 quilos de peixe para o consumo da
comunidade, mais 40 para vender para fora", diz Ãngohó.
E os pequenos sentem falta da diversão que era nadar nas águas.
"Agora não tem mais como, porque está cheio de minério", diz Patioba.
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